sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O valor de um lugar

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Quem são aqueles homens olhando para nossas casas ali do outro lado da rua? Apontam, cochicham, planejam. Não notam nossas presenças desconfiadas na janela, nem os olhares de esguelha pelas varandas. Continuam falando em projetos grandiosos que arquitetaram sobre uma folha de papel. Com caneta e régua construíram edifícios sobre casas desenhadas a lápis.

Num dia desses, numa carta (dessas de propaganda), finalmente se identificaram. São de renomada incorporadora, parceira de grande construtora (dessas que é até difícil pronunciar o nome – pomposo) e vêm, respeitosamente nos participar da construção de luxuoso condomínio sobre nossos lares. Claro, alguns detalhes ainda precisam ser ajustados, mas basta apenas uma assinatura abaixo. Nela, se autoriza a comercialização e a locação do imóvel. Assinado, Sr. Fulano de Tal.

Após a notícia da desapropriação de imóvel próprio por empresa particular, começo a fazer contas. Para onde iremos?
Sim, para onde, pois infelizmente, por ironia do destino, não poderemos mais morar no mesmo lugar. Pelas nossas contas, para morar aqui, em espaço três vezes menor, teremos que desembolsar cinco vezes mais. Coisas do progresso.

A empresa do Sr. Fulano de Tal é especialista em avaliação de imóveis. A fórmula é simples: vendem apartamentos financiados a preço de ouro e compram nossas casas a preço de lata. Sr. Fulano de Tal e seus amigos foram treinados a fazer o seguinte: explicar aos compradores que aqui será o paraíso, enquanto convencem os atuais moradores de que aqui virará um inferno.

Sr. Fulano de Tal:
(Rua não sei qual, sem número)
Venho respeitosamente, por meio desta, oferecer dados à sua avaliação. Uma vez sabendo que sobre nosso terreno figurará um arranha-céu, gostaria de colaborar com o plano de marketing dessa renomada empresa e seus parceiros, através de preciosas informações sobre o valor deste local.

Sei que é uma pessoa muito ocupada, por isso ofereço uma visita virtual à minha casa. Entremos pela garagem.

Nesse local brinquei sobre montes de areia, passei horas fingindo que estava na praia enquanto meus pais construíam nossa casa. Foi aqui que conheci meus amigos de infância. Aqui também funcionou uma loja de automóveis, onde meus pais fizeram fama e amigos, vendendo os melhores fuscas de toda região. A garantia era o fio de bigode. E o pagamento, nota promissória. Minha irmã enquanto trabalhava aqui cuidava de mim, que brincava o tempo todo na rua. Aqui a família toda suou e sorriu, trabalhou junta e foi feliz.

Nessa grande escada da entrada eu jogava bola sozinha. Eu e a escada éramos muito amigas. A gente só parava de jogar quando eu ficava cansada. Quando minha mãe a encerava, eu descia de tapete. E também passava tardes inteiras sentada aqui conversando com a turma da rua.

Essa sala era um quintal. Aqui ficava meu balanço e minha piscina. E aqui havia um banquinho de alvenaria onde minha mãe conversava com meu nono. Eu e muitos dos moradores da região somos descendentes de italianos.

(Venha até a varanda)

Daqui se vê a casa do seu Michelle. Ele também veio do sul da Itália. Todo mundo era conhecido, por isso brincávamos na rua sem preocupações, pois não éramos vizinhos, éramos uma família. O lanche da tarde, acontecia cada dia na casa de uma criança.

Atrás daquele prédio está o morro. Lá a gente escorregava de papelão, empinava pipa, soltava balão. A noite daqui era animada. De vez em quando passava o Bloco do Faísca, que hoje é o Águia de Ouro. Nessa rua, em várias procissões eu saí de anjinho, e bem nesse muro ficava uma vela e uma santinha. Daqui minha mãe me via desfilando na fanfarra. Jogava vôlei no meio da rua e quase fui atropelada. Daqui também ficava esperando meu pai passar dentro do ônibus, quando ia fazer compras na cidade. É, esse ônibus está aqui até hoje. Demora... mas quando aparece... que alegria! Mas o melhor dessa varanda era no carnaval. Confetes e muita água dentro da xeringa. Hoje, nessa varanda brincam meus sobrinhos, se penduram na mesma grade, igualzinho eu fazia.

Aqui na Pompéia conhecemos o padre, o traficante, a cartomante, a grega da esquina, a dona da pizzaria. O ar daqui é diferente, o senhor precisa ver. Sr. Fulano de Tal, o carteiro se chama Joílson e, faça chuva, faça sol, está sempre sorrindo.

Aqui tem uma Feira de Artes fantástica, vem gente de toda parte. Vem para a Feira de Artesanato também. A cada dia da semana tem uma feira em local diferente, com um pastel mais gostoso do que o outro, o senhor precisa experimentar.

Em julho, a rua inteira fica coberta por ipês. É bonito de chorar. A gente vai a pé até o Sesc, ao Metrô Vila Madalena, ao Palmeiras. Falando em Palmeiras, o senhor precisa ver que lindo que é em dia de jogo. Os avôs que moram aqui há quarenta anos ou mais, ficam lá na lanchonete relembrando o Palestra dos velhos tempos. A Pompéia é pura história escrita nos idosos que estão dentro dos sobrados. E o São Camilo mesmo, subiu com a ajuda de muitas quermesses onde vários casais se formaram. Os filhos dessa gente se conhecem até hoje, pois estudavam em ótimas escolas estaduais que existiam por aqui. Não é de se estranhar que hoje consigam comprar os apartamentos de luxo que o senhor vende aqui no bairro.

Senhor Fulano, aqui na Pompéia há pássaros coloridos, muitos pés de amora e pitanga, mangueiras e goiabeiras dentro das casas. Pelas ruas é possível colher limão e flores. Aqui em frente à minha casa, há uma árvore que foi plantada pela gente e que cresceu junto comigo. Aqui pertinho há uma pracinha que conta muitas histórias, onde moram sabiás e bem-te-vis. Nessa mesma praça há o cachorro mais querido do mundo, meigo e carinhoso, e eu brinco com ele sempre que volto da sorveteria Cristal, lá na Vila Romana, que também existe há mais de quarenta anos.

Mas nem tudo aqui são flores, é verdade. Há dias em que demoro tanto pra chegar em casa... sabe Sr. Fulano, por aqui atualmente circula muita gente e os carros acabam obstruindo algumas ruas. Nesses dias, eu não vou mentir, fico um pouco aborrecida. Mas é só chegar perto de casa, bater um papo com o dono da padaria, cumprimentar algum amigo que passa pela rua, olhar seu Michelle sentado escondidinho e espiando atrás da cortina, avistar meus pais me esperando nessa varanda... Sr. Fulano... é uma felicidade... mas uma felicidade, que não tem preço!

Sem tempo para mais, embora com muito mais,

Emocionadamente,

Uma Moradora.

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